Antes de passar a tesoura, as pessoas contam suas histórias de vida, sofrimentos, qualidades, defeitos… Aí, Luiz Fernando faz um corte de acordo com a verdadeira essência da cliente
Uma menina ruiva chega, diz um “Oi” e se senta no banquinho no meio da calçada. Sequer se olha no espelho que está à sua frente. Percebo que ela está abatida e muito retraída. Sem falar que veste uma blusa de mangas compridas num dia muito quente. Começamos a conversar e ela me conta que cortou os pulsos. Por isso estava cobrindo os braços naquela tarde de verão.
Depois de mais alguns minutos de papo, a garota revela que faz isso por causa do relacionamento com seu namorado, que é muito conturbado. Ela me explica que esse gesto é uma maneira de manifestar sua agressividade reprimida. Absorvi o que ouvi e falei para aquela jovem tão sofrida: “Então vamos transformar essa agressividade com um corte de cabelo!”. Afinal, sou um cabeleireiro psicólogo!
Descobri que queria ser cabeleireiro aos 24 anos
Comecei a trabalhar muito cedo. Aos 12 anos já era funcionário de uma fábrica de instrumentos cirúrgicos odontológicos e, aos 18, já tinha minha própria fábrica, que montei com três amigos. Só que, seis anos depois, percebi que ali não era meu lugar. Estava infeliz naquele trabalho. Definitivamente não era o que eu queria fazer para o resto da minha vida.
Nessa época, 1998, minha ex-mulher estava fazendo um curso para ser cabeleireira e insistiu que eu fizesse com ela. É que cortar cabelo era um hobby pra mim. Aprendi sozinho e fiz meu primeiro corte aos 16 anos, um moicano no meu irmão mais novo. Também cuidava do cabelo do mais velho. Usava gilete, máquina de corte ou qualquer tesoura que estivesse ao meu alcance. Até meus amigos costumavam cortar comigo.
Decidi me inscrever também. Foi a melhor coisa que fiz! Durante o curso, já consegui emprego num salão. Meu primeiro salário não chegava nem perto do que eu ganhava na fábrica, mas sentia prazer fazendo aquilo. Então, soube que era a profissão certa pra mim!
Passei por uns quatro salões diferentes entre os 24 e os 30 anos. Sempre tive um jeito diferente de cortar cabelo. Quando um de meus clientes senta na cadeira, faço algumas perguntas antes de começar: “Com o que você trabalha? O que gosta de fazer? O que quer mostrar com esse corte?”. Gosto de papear com a pessoa que está ali para deixá-la mais confortável. Assim, ela me diz o que realmente quer.
Faço de tudo para que me vejam como mais do que um simples cabeleireiro, que só vai prestar um serviço. Ao entender a história de vida de cada pessoa, sou capaz de transmitir no corte o que ela quer mostrar para ela mesma e para os outros.
Cortei o cabelo de uma desconhecida na balada
Essa minha técnica de cortar acabou me apontando o caminho que eu procurava para ajudar as pessoas. Tudo começou em 2010, quando eu estava na fila de uma balada esperando pra pagar a comanda de madrugada. Comecei uma conversa com uma menina que estava atrás de mim. Como de costume, perguntei o que ela fazia. Trabalhava com cinema. Quando ela retribuiu a pergunta, contei que era cabeleireiro. “Nossa, nem me fale! Fui a um salão essa semana e não saí nada satisfeita. Eu queria um corte bem agressivo, mas o cabeleireiro não fez nada do que pedi!”, desabafou.
Depois de mais alguns minutos de conversa, falei que eu cortaria seu cabelo. Ela gostou da ideia: “Quando posso marcar um horário com você?”. Como sempre ando com meu material na mochila, respondi: “Se quiser, pode ser agora mesmo!”. Ela topou. Sugeri cortar mais curto, raspar de um lado e deixar uma franja no meio da testa. A menina aprovou minha ideia. Então, cortei o cabelo dela num banquinho que estava na calçada da balada. Quando terminei, ela se olhou no espelho de mão que também carrego comigo e disse: “Era isso mesmo que eu queria! Obrigada! Quanto te devo?”. “Nada!”, respondi. É que a felicidade dela já era mais que um pagamento pra mim.
Aquilo me fez tão bem que decidi sair pelas ruas de São Paulo para cortar o cabelo das pessoas. Assim, nasceu o projeto Salão Itinerante, em 2008, com o intuito de quebrar esse conceito de salão de beleza que só cuida da aparência. Meu projeto também ajuda a pessoa a saber o que ela quer e entender que um corte de cabelo significa muito mais do que um estilo. Ele deve transmitir a personalidade. Não gosto que digam que corto cabelo de graça. Faço isso em troca de uma história.
Hoje atuo em comunidades, bairros, eventos… Trabalho assim: a pessoa senta de frente para o espelho e começa a me contar sua história de vida, se está passando por algum problema, quais suas qualidades, defeitos, relacionamentos, ambiente de trabalho… Qualquer coisa que queira. Depois desse bate-papo, penso no melhor corte de cabelo para ela. Dizem que sou um psicólogo ambulante!
Já estou acostumado com isso. Não é fácil, tanto que o projeto não tem uma periodicidade fixa. Preciso estar bem e disposto para realizar esse trabalho. São muitas histórias e, querendo ou não, tenho que absorver algumas coisas para transmitir ao corte. Mas vale muito a pena!
Cada depoimento me faz crescer e melhorar como ser humano. As pessoas saem da cadeira impressionadas e muito felizes. Aquilo me preenche demais! A da menina ruiva me marcou muito, pois depois da transformação ela nunca mais cortou os pulsos. Toda a agressividade que estava dentro dela foi direcionada para o cabelo.
Meu projeto não cuida apenas da aparência, mas da beleza da alma
Outro caso que me marcou foi de um menino que era certinho e ao mesmo tempo tinha uma personalidade muito forte. Para mostrar os dois lados dele, cortei careca de um lado e penteei certinho do outro. Ele adorou. Mas isso não significa que sempre faço cortes ao meu gosto. É tudo de acordo com a necessidade da pessoa.
Quando termino, todos me agradecem pela conversa e pelo corte. Mas digo que elas estão falando para elas mesmas e não pra mim. No fim das contas, quem mais aprende sou eu. O Salão Itinerante é um projeto que pretendo levar para a vida inteira. Mais do que a aparência, ele também cuida da beleza da alma. – LUIZ FERNANDO SOARES, 38 anos, cabelereiro, São Paulo, SP