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Cegueira, violência e terror pelas redes sociais

– (arte: noticias.adventistas.org)

Leyla Yurtsever, advogada, articulista e professora

 

 

Quem já teve a oportunidade de ler “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, experimenta múltiplas sensações. Devido a uma cegueira branca, os personagens se entregam aos instintos mais primitivos: ganância, ódio, abuso sexual, violência, despudor, extorsão, arrogância, humilhações e outras deformações morais são afloradas. Quem quer que fosse: médico, soldado, ladrão, ancião ou jovem, ao ser encarcerado pela cegueira branca revela uma bestialidade, até então escondida. Ao fugirem do manicômio, onde foram exilados, encontram uma cidade que é o retrato da desolação: lixo, cadáveres, incêndio, abandono e banditismo social que obscurecem e fazem esquecer quaisquer laços de humanidade. Os olhos de uma única mulher, que pode enxergar, são o guia nesta realidade degradante.

Saramago oferece uma oportunidade de reflexão sobre a fragilidade dos códigos morais que se quebram e desmascaram uma sociedade doente. Predomina um utilitarismo vergonhoso onde ninguém se vê mais. Há uma coisificação das pessoas, que se reduzem apenas a alguns poucos benefícios financeiros, sexuais ou servis.

Lamentavelmente, em alguns momentos, parece que não estamos tão longe desse ambiente ficcional. Na verdade, pouco nos separa da dramaticidade, cegueira e violência da atual sociedade. O par de olhos solitários hoje é substituído por milhares de olhos mecânicos que registram, acompanham e atualizam cada momento da sociedade. Uma onda tecnológica conecta diferentes pessoas em pontos distantes de forma rápida, segura e anônima.

São vídeos, mensagens, apresentações e outros arquivos que não apenas apresentam mazelas sociais como chacinas, execuções, roubos e estupros, mas também tem servido como plataforma de propaganda para muitas organizações criminosas em seu objetivo de intimidar o Estado e impor terror e medo na população.

No Oriente Médio, organizações terroristas como o Estado Islâmico, Boko Haram e Al-Qaeda se utilizam da comunicação multimídia para divulgar, financiar e recrutar adeptos. A crueza de suas ações é estrategicamente pensada. Os atos mais bárbaros e insanos são transmitidos como forma de propagar, seduzir e recrutar seguidores. Redes sociais, aplicativos próprios, e-commerce de livros e vídeos ideológicos, sites e falsas organizações beneficentes servem como fonte para atos de terrorismo. O Relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, de 2012, já detalhava o uso das redes sociais para promover atos de terror, recrutando pessoas de grupos vulneráveis e marginalizados em diversos países.

Aqui, muitos grupos criminosos têm se utilizado das mesmas estratégias. Execuções, torturas e invasões em áreas dominadas por facções rivais são registradas e narradas em detalhes. Certamente que os registros dessas ações não são feitos por acaso, sem razão ou de forma aleatória. Estes funcionam como relatórios online aos líderes dessas organizações criminosas que, mesmo presos, estão conectados e assim, se tornam oniscientes pelos olhos tecnológicos que tudo lhes mostra. São diretores de cena brutais de jovens afligidos pela pobreza, solidão e laços familiares.

Os jovens, são assim, as vítimas imediatas dessa violência que, seduzidos pelo poder, ganância, ódio e violência sem limites, são recrutados, mortos e substituídos com a mesma velocidade com que seus vídeos são compartilhados.

Compartilhar é o outro lado dessa violência, numa clara demonstração de que não existe espetáculo sem plateia. Mas é uma plateia entorpecida, insensível e ávida por novas cenas que observa inerte a degradação humana, a semelhança dos guardas do manicômio da obra de Saramago. A circulação exponencial de tanta violência faz vítimas em todas as direções. Nesse processo, a sociedade é um braço inconsciente que contribui para aumentar a violência ao compartilhar e assim, divulgar e propagar os ideais e atos dos grupos criminosos. É uma publicidade gratuita.

A Lei 12.850/13 define como terrorismo o uso das redes sociais para promover, divulgar e participar de ações que possam intimidar o Estado e organizações e pôr em perigo pessoas e patrimônio, com pena prevista de até 30 anos. Muitas facções criminosas que se enquadram nesse perfil, tem crescido em números de seguidores, mesmo que suas ações vitimem a própria sociedade. Somem a isso os diversos programas que sob o manto de um pseudojornalismo terminam servindo como publicidade criminosa, mortificação social e a glorificação do banditismo social.

Talvez a exemplo da obra de Saramago, precisamos de alguém que nos salve de uma cegueira e nos faça enxergar nossas muitas mazelas. Ao entrar numa igreja, a guia de cegos observa que, todos os santos estão vendados, indicando que “se os céus não veem, que ninguém veja”.

Sair do manicômio é apenas o início.

 

Leyla Yurtsever é advogada, articulista e professora. Sócia e fundadora do escritório jurídico Leyla Yurtsever Advogados Associados. Graduada em Direito. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Ciesa; e em Direito Penal e Processo Penal pela Ufam. É Mestre em Gestão e Auditoria Ambiental pela Universidad de Leon (2006) – Espanha. Doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Santa – Fé – UCSF. Foi coordenadora do Curso de Especialização em Direito Eleitoral da Universidade do Estado do Amazonas e do Núcleo de Prática Jurídica, neste último atua ainda como professora. Palestrante convida da Escola Judiciária Eleitoral – EJE/ AM. Coordenou e lecionou no Escritório Jurídico da UNIP e no Núcleo de Advocacia Voluntária – NAV – da Uniniltonlins. Professora da Universidade Federal do Amazonas e subcoordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UFAM/Direito. Foi professora do curso de Segurança Pública da UEA e a primeira mulher a ser professora de uma disciplina militar denominada “Fundamentos Políticos Profissionais” no Comando-geral da Polícia Militar. Atualmente é Assessora Jurídica Institucional da Polícia Militar do Amazonas.

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