QUEM SOMOS COMO SOCIEDADE? por Leyla Yurtsever, advogada, articulista e professora

Como nos enxergamos como sociedade e como indivíduos em suas singularidades é um desafio. A pandemia do coronavírus que não respeita fronteiras nacionais, classes sociais e faixa etária tem desvendado parte dessas particularidades. As dimensões econômico-sociais e os projetos políticos parecem caminhar em direções opostas, onde ações equivocadas, insensibilidades e gestos desumanos assumem caráter de normalidade.

A excepcionalidade deste momento tem mostrado que governar é e exige mais que a ostentação de um cargo público. A paralisação das atividades econômicas obrigou os governos nacionais a adotarem medidas de socorro urgentes. Organismos internacionais, como Banco Mundial, Organização Mundial do Trabalho e Organização Mundial de Saúde são unânimes em projeções negativas sobre a redução da atividade econômica mundial, aumentos da taxa de desemprego e da mortalidade decorrente do Covid-19.

Semelhante as ações de reconstrução da Europa pós Segunda Guerra Mundial, pequenos planos Marshall se proliferam mundo a fora para minimizar os efeitos da crise econômica. Os EUA projetam injetar U$$ 2 trilhões para socorrer empresas, o sistema de saúde e trabalhadores. Cidadãos mais vulneráveis devem receber um cheque de US$ 1.000 para aumentar o consumo. O Reino Unido segue caminho semelhante, prevendo destinar 15% do Produto Interno Bruto, o equivalente a US$ 400 bilhões, em empréstimos as empresas. Trabalhadores também devem receber um auxílio de £ 1.200, algo em torno de R$ 7.115,00. A França destinará 20% do seu PIB para socorrer as empresas. Se tais medidas serão suficientes, ainda é incerto, mas revelam a disposição do governo em assumir seu papel como agente econômico ativo e não um simples arrecadador de impostos.

Já o plano brasileiro segue uma lógica ao estilo feijão com arroz. Os R$ 88 bilhões anunciados pelo governo federal priorizam a renegociação de dívidas de Estados e Municípios com a União e Bancos e em recompor fundos pela queda de arrecadação. O aporte ao sistema de saúde deverá ser de R$ 8 bilhões. Um suplemento de R$ 200,00 aos trabalhadores informais está sendo analisado. A Medida Provisória 927 foi a pá de cal nesse cenário. Viciada juridicamente, ela flexibilizou ainda mais as regras trabalhistas e impôs normas patronais sem a supervisão dos órgãos trabalhistas. Neste cenário sobram ameaças empresariais e falta bom senso. O sacrifício para reduzir salários de parlamentares e do poder judiciário com todos os auxílios é uma proposta utópica tão inacessível como um horizonte distante. Prossigamos para o campo social.

O isolamento social em massa, similar a Segunda Guerra, para evitar a propagação do vírus, revelou que o triunfo e a imparcialidade da morte são globais, assim como os exageros, excessos e a arrogância da natureza humana. Nossa falta de sorte só aumenta porque o Covid-19 também é surdo. Assim, infelizmente, discursos políticos de eufemismo não reduzem o número de doentes e mortos.

A estocagem de alimentos, álcool e os quilômetros de papel higiênico que transmitem uma (falsa) sensação de segurança também revelam o nível de egoísmo e individualismo social. Pessoas mais vulneráveis economicamente e instituições de amparo (idosos, crianças, etc.) que não possuem recursos para grandes compras são penalizados duplamente. Insensibilidades como essa são mais nojentas e nocivas que o próprio vírus. As fake news, os textos dramáticos e os relatos apocalípticos viralizados pela atual interconexão potencializam ainda mais o temor social.

Mas é no recôndito do lar que uma verdadeira guerra é travada. Crescendo em paralelo com os memes nas redes sociais que satirizam essa quarenta imposta, estão também os casos de violência doméstica, como já denunciado no Rio de Janeiro, feminicídio, depressão, ansiedade, suicídio e divórcios. Acrescente-se a tudo isso os relatos de stress, fanatismo, loucura, histeria, pânico, apatia e outros sintomas psicossomáticos.

A obrigatoriedade da convivência tem colocado à prova a máxima de que “família é tudo”. O que poderia ser constituir uma oportunidade para o diálogo, maior e melhor atenção ao cônjuge e filhos, atualizar leitura, fazer um curso EAD, descansar, ver filmes, reorganizar as gavetas, buscar o equilíbrio emocional, fazer reflexão espiritual, repensar a carreira e os objetivos de vida tem sido definido como uma clausura insuportável. Os parentes se tornaram companheiros de cela, a convivência uma angústia e o privilégio do lar um peso. Estamos gravitando entre o desejo e a aversão.

Viva Schopenhauer e sua lógica de relacionamentos. Sua perspectiva é que, desejo só se mantem como tal enquanto não for adquirido. Tão logo é alcançado, é logo repudiado, pois perde seu encanto e se torna entediante.

A televisão, com diversos conteúdos liberados, tem sido o refúgio dessa apatia para muitos. Quem sabe uma boa oportunidade de rir com clássicos como As aventuras do Capitão Cueca. Certamente, um perigo menor e muito mais instrutivo.

#ficar em casa é ótimo! Motivos corretos não nos faltam.

 

Leyla Yurtsever é advogada, articulista e professora. Sócia e fundadora do escritório jurídico Leyla Yurtsever Advogados Associados. Graduada em Direito. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Ciesa; Direito Penal e Processo Penal pela UFAM; e em Cidadania do Século XXI, Direito Penal e Sociedade Global pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu – IDPEE.É Mestre em Gestão e Auditoria Ambiental pela Universidad de Leon (2006) – Espanha. Doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Santa – Fé – UCSF. Foi coordenadora do Curso de Especialização em Direito Eleitoral da Universidade do Estado do Amazonas e do Núcleo de Prática Jurídica, neste último atua ainda como professora. Palestrante convida da Escola Judiciária Eleitoral – EJE/ AM. Coordenou e lecionou no Escritório Jurídico da UNIP e no Núcleo de Advocacia Voluntária – NAV – da Uniniltonlins. Professora da Universidade Federal do Amazonas e subcoordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UFAM/Direito. Foi professora do curso de Segurança Pública da UEA e a primeira mulher a ser professora de uma disciplina militar denominada “Fundamentos Políticos Profissionais” no Comando-geral da Polícia Militar. Atualmente é Assessora Jurídica Institucional da Polícia Militar do Amazonas.

 

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