Do mercado ao teatro: (in)visibilidade e (des)proteção da Violência contra a Mulher – por Leyla Yurtsever

Manhã de quarta-feira. Sobre um pequeno tablado um homem trazendo uma mulher amarrada pelo pescoço pede atenção. Aos gritos, ele chama os interessados no leilão. Diferentemente do que se possa pensar, este não é um leilão de escravos num período histórico distante ou país desconhecido.  Trata-se da Inglaterra Vitoriana do século XVIII e a pessoa a ser leiloada é uma mulher branca que também é esposa do leiloeiro ad hoc. O humilhante espetáculo era uma alternativa aos custos do divórcio, algo em torno de £ 3.000 à época, o equivalente a £ 15.000 hoje (cerca de R$ 68.000,00). Estima-se que cerca de 400 esposas foram leiloadas como forma de finalizar um casamento infeliz.

Atualmente, os custos do divórcio são outros, mas as cordas ainda envolvem o pescoço da mulher. Há muitas reflexões a serem feitas. Hoje, o palco da violência não é apenas o mercado, mas o lar, o transporte público, o local de trabalho, teatro e outros locais. Não existe lugar seguro. Mas, se Lei existe, por que os casos aumentam? A Lei existe, não a sua realidade. Há uma cultura machista, misógina e patriarcal em andamento que deseja sufocar e subjugar a figura feminina, em favor de uma superioridade masculina. Assim, violência é fenômeno sociocultural e, Lei não muda cultura.

Mas violência é também estrutural. Feminicídios, em geral, são antecedidos por medidas protetivas, demonstrando a abstração da lei e o pouco caso que se faz dela. O que enseja novas questões: Medida protetiva de quem? Quem garante sua aplicação? O caminho da (des)proteção, iniciado pelo Boletim de Ocorrência, em poucos casos, gera inquérito remetido ao Ministério Público. O registro é um ato inicial, ainda que não cesse a tristeza, vergonha e dor da mulher. Muito da impunidade se esconde sob a burocracia jurídica.

Vítimas não se comprazem de estatísticas. Estas apenas revelam o abismo dessa desproteção. No país, dos mais de 5.500 municípios, apenas pífios 8% tem delegacias da mulher. Os números da violência contra a mulher superam quaisquer vítimas de guerra civil no mundo. No Brasil, de 2018 a 2019, mais de 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento, enquanto 22 milhões (37,1%) sofreram algum tipo de assédio. Entre 2017 e 2018 os casos de homicídio caíram 10%, mas o feminicídio cresceu 4% (Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Isso sem levar em conta os não registrados.

A curva dos vários tipos de violência (verbal/psicológica/física/sexual/cárcere privado) contra a mulher é ascendente. São 536 novos casos por hora no Brasil, sendo que a cada 2 horas uma mulher foi assassinada, somente em 2016. É uma violência cega que não escolhe cor, religião, classe social, nível educacional ou estética corporal. Nesse microcosmo mulheres pobres e negras ostentam os maiores índices. Um retrato que descortina o quanto a carne negra continua sendo a maior vítima e a mais barata no mercado das perversões. Contudo, violência e vergonha não escolhem classe social ou nível educacional. Um levantamento do Instituto Patrícia Galvão revelou que muitas vítimas de violência são da elite social (63%), mas que não registram ocorrência temendo a exposição social. São mulheres invisibilizadas nos prédios e condomínios de luxo, onde as vozes silenciadas são pouco ouvidas. De Angelas Diniz a Marias da Penha, todas se igualam pela vitimização.

É uma violência em onda que se inicia pelo trauma físico/psicológico, que também atinge os filhos. O último estágio é a sensação de incapacidade e impunidade latente que é alicerçada pela morosidade judiciária, devido à ineficácia protetiva, a efetiva condenação dos culpados, o descumprimento da punição e a fraca fiscalização estatal. Assome-se a isso, a previsão legal que possibilita inúmeros recursos provocando lentidão e efeitos tardios. Nos poucos casos julgados, há uma desproporcionalidade de condenações direcionadas as classes sociais mais baixas. Demais acusados, de classes sociais mais elevadas, encontram amparo no prestígio e no sistema recursal brasileiro, protelando e, muitas das vezes, encontrando absolvição. Esse cenário de impunidade, bastante comum no sistema jurídico brasileiro, revela uma justiça seletiva e não imparcial.

Dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ mostram que de 2016 a 2018, os casos pendentes de violência doméstica passaram de 892.273 para 1.009.165. Casos de feminicídio, aumentaram 34%, saindo de 3.339 para 4.461. No Amazonas, os números não são menos alarmantes, apesar da redução (14%) de casos pendentes: de 22.280 para 19.252. Medidas protetivas também cresceram. Quase 100 mil a mais em todo Brasil no mesmo período, enquanto o Amazonas saiu de 4.520 para 6.501. Ainda que se considere o incremento dos sub-registros ou a reclassificação do próprio CNJ sobre tipos de violência doméstica, essas são estatísticas de uma vergonha nacional.

Se o teatro de poder pela venda de esposas, ocorria a despeito de uma mulher ocupar o trono inglês, a que se refletir o quanto dessa violência não se reproduz e é reforçada pelas mãos de uma justiça tardia, e que também é simbolizada por uma mulher. Pois, infelizmente, e não apenas, quarta-feira, sobre um pequeno tablado….

 

Leyla Yurtsever é advogada, articulista e professora. Sócia e fundadora do escritório jurídico Leyla Yurtsever Advogados Associados. Graduada em Direito. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Ciesa; e em Direito Penal e Processo Penal pela Ufam. É Mestre em Gestão e Auditoria Ambiental pela Universidad de Leon (2006) – Espanha. Doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Santa – Fé – UCSF. Foi coordenadora do Curso de Especialização em Direito Eleitoral da Universidade do Estado do Amazonas e do Núcleo de Prática Jurídica, neste último atua ainda como professora. Palestrante convida da Escola Judiciária Eleitoral – EJE/ AM. Coordenou e lecionou no Escritório Jurídico da UNIP e no Núcleo de Advocacia Voluntária – NAV – da Uniniltonlins. Professora da Universidade Federal do Amazonas e subcoordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UFAM/Direito. Foi professora do curso de Segurança Pública da UEA e a primeira mulher a ser professora de uma disciplina militar denominada “Fundamentos Políticos Profissionais” no Comando-geral da Polícia Militar. Atualmente é Assessora Jurídica Institucional da Polícia Militar do Amazonas.

Um comentário para “Do mercado ao teatro: (in)visibilidade e (des)proteção da Violência contra a Mulher – por Leyla Yurtsever

  1. Antônio Santarém disse:

    Parabéns, Dra. Leyla Yurtsever !!!
    Seus artigos são fantásticos, atuais e excepcionalmente bem elaborados.
    Textos agradáveis, atrativos e sempre com uma temática importante para esclarecer as dúvidas dos leitores.
    Muito obrigado por sempre nos servir com essas obras de arte.

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