Crimes famélicos, vidas secas e baleias

Leyla Yurtsever, advogada, articulista e professora

 

 

A cultura, muitas vezes, é fiel espelho da realidade. Em 1938, Graciliano Ramos, publica Vidas Secas onde detalha o ciclo ininterrupto da vida miserável de uma família de retirantes sertanejos obrigada a se deslocar para áreas menos castigadas pela seca. Fabiano, Sinhá Vitória, o filho mais novo e o mais velho são acompanhados pela cachorra Baleia na busca pela sobrevivência. É pelos olhos dessa última personagem que a voz dos sujeitos subalternos são ouvidos e, por onde se desnuda a hipocrisia, a dureza, as ambições, os anseios e os vários sentimentos humanos são expressados. Mas, a inclemência da natureza oprimia menos que a exploração entre os próprios homens e, a aridez de adjetivos na obra reflete, as relações que ali se definham.

Vidas Secas não é retrato imóvel de uma época que ficou para traz. Ela é presente. Empurrados não por uma seca, mas, pelas condições econômicas opressoras, personagens modernos cometem pequenos delitos na luta pela sobrevivência. São os crimes famélicos ou ditos em sua aridez, crimes de fome ou de quem está faminto. Alguns desses crimes chegaram a ocupar a pauta do Supremo Tribunal de Justiça. Em Minas Gerais, uma promotora denunciou quatro indivíduos pelo roubo de 4 minhocas. No Rio Grande do Sul, um cidadão, qualificado pela alcunha de Rambo, foi acusado pelo vizinho de furto de 5 galinhas caipiras, avaliadas em R$ 38,00, sendo que 3 eram gordas e 2 magras. Levado ao Tribunal, este fora condenado a 2 anos e 3 meses de reclusão, em regime fechado e sem o direito de recorrer em liberdade. Ambos os casos pertencem a lavra de 1999. No primeiro, o STJ qualificou o caso como sem relevância jurídica, recorrendo ao princípio da insignificância, onde a pena seria maior que o dano causado. No segundo caso, Rambo também foi absolvido sob o mesmo princípio.

A visão jurídica nestes casos não é pela proteção, apologia ou incentivo ao crime, mas pela proteção a um bem jurídico mais valioso: a vida. Assim, o bem jurídico mais agredido é o menos valioso que é a propriedade de outro. Também, crimes famélicos precisam ser enquadrados em alguns requisitos. A princípio, deve ser furto. Não pode ser extorsão, roubo, etc., e sem emprego de violência ou ameaça. Havendo essas, a vida de outrem passa a ser protegida. Depois, deve haver proporcionalidade entre o furto e a imprescindível necessidade básica de sobrevivência imediata. Não se pode alegar crime famélico no furto de 200 quilos de carne (ainda que seu preço esteja nas alturas), um celular ou televisão. Por fim, é preciso que o juiz obtenha plena convicção sobre o estado de necessidade do acusado, que não obtinha outro meio razoável de sobrevivência, bem como se não há reincidência neste tipo de crime.

Mas os crimes famélicos não são exceção no Brasil. De acordo com a Pública – Agência de Jornalismo Investigativo, dados obtidos via Lei de Acesso à Informação, mostram que entre 2014 e 2018, foi observado um crescimento de 16,9% de registros de furtos de alimentos no Estado de São Paulo. Dos boletins que marcavam a profissão dos autores do delito, um quarto foi cometido por desempregados. Além disso, em 76,8% dos casos os acusados são homens. A grande maioria dos furtos foi cometida em estabelecimentos comerciais, e o alimento mais furtado foi carne bovina e seus derivados. Estão nesta lista também doce, chocolate, leite e derivados, alimento infantil, bolachas, salgadinhos e sorvetes. Muitos que cometem crimes famélicos terminam na prisão, superlotando ainda mais o sistema prisional.

Por quaisquer aspectos que se observe essa realidade, é nítida que nossa fome não é apenas de alimento, mas também de justiça social.

Na obra de Graciliano, o contrassenso reside na morte da Baleia (a cachorra) na seca causticante que, tem como último vislumbre o “céu dos cachorros, cheio de preás”.

Em um país que ano após ano bate recordes na colheita e exportação de alimentos, a fome ainda é um substantivo que descreve a vida de milhares de vidas secas no Brasil. Um vislumbre para muitas “baleias”.

 

Leyla Yurtsever é advogada, articulista e professora. Sócia e fundadora do escritório jurídico Leyla Yurtsever Advogados Associados. Graduada em Direito. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Ciesa; e em Direito Penal e Processo Penal pela UFAM. É Mestre em Gestão e Auditoria Ambiental pela Universidad de Leon (2006) – Espanha. Doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Santa – Fé – UCSF. Foi coordenadora do Curso de Especialização em Direito Eleitoral da Universidade do Estado do Amazonas e do Núcleo de Prática Jurídica, neste último atua ainda como professora. Palestrante convida da Escola Judiciária Eleitoral – EJE/ AM. Coordenou e lecionou no Escritório Jurídico da UNIP e no Núcleo de Advocacia Voluntária – NAV – da Uniniltonlins. Professora da Universidade Federal do Amazonas e subcoordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UFAM/Direito. Foi professora do curso de Segurança Pública da UEA e a primeira mulher a ser professora de uma disciplina militar denominada “Fundamentos Políticos Profissionais” no Comando-geral da Polícia Militar. Atualmente é Assessora Jurídica Institucional da Polícia Militar do Amazonas.

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