Curiosidades

Ilha da Luta à brasileira: hotel flutuante na Amazônia abrigou evento mais exótico do MMA

Por Marcelo Barone — Rio de Janeiro

O Ultimate estreia, neste sábado, a Ilha da Luta, em Abu Dhabi, com o UFC 251, que será realizado através de um esforço monumental para levar em segurança dezenas de lutadores, treinadores e staff da companhia à capital dos Emirados Árabes Unidos em meio à pandemia do novo coronavírus. É uma operação que envolve testes de Covid-19, medidas de proteção quanto à contaminação e isolamento para não desfalcar o card.

Portal de entrada do evento, em uma das áreas do hotel — Foto: Marcelo Alonso

Portal de entrada do evento, em uma das áreas do hotel — Foto: Marcelo Alonso

Em um universo bem distante do profissionalismo e da pujança financeira e organizacional do UFC, o Brasil teve uma versão “raiz” da Ilha da Luta, em 13 de setembro de 2003. A edição inaugural do Jungle Fight foi a mais insólita do MMA brasileiro, realizada em um hotel flutuante no Rio Negro, no coração da Amazônia, onde só se podia chegar após duas horas de viagem de lancha, partindo de Manaus (AM).

À época, o Ariaú Amazon Towers, que fechou em 2015, era um dos hotéis mais caros do Brasil – um símbolo do ecoturismo – formado por torres e passarelas erguidas sobre as águas. Não havia outra forma de chegar ou zarpar que não fosse de barco. E foi lá nas dependências do complexo hoteleiro – que no auge hospedou Jimmy Carter, ex-presidente dos Estados Unidos, o bilionário Bill Gates, a cantora Jennifer Lopez, dentre outras celebridades – que nasceu o Jungle Fight.

– A parada foi muito louca! Era no meio da floresta mesmo, um lugar sensacional. As pessoas gostam de coisa nova, diferente. Por isso que a ideia do UFC, de fazer uma Ilha da Luta, é sensacional. O Jungle teve uma repercussão gigante, um sucesso. Foi histórico – declarou Wallid Ismail, que realizou a edição em parceria com o renomado Antonio Inoki, promotor de eventos de luta no Japão, ao Combate.com.

O jornalista Marcelo Alonso cobriu a primeira edição do Jungle Fight e, embora tenha trabalhado em eventos de tamanhos variados, em países distintos, atesta o quão inusitada foi aquela “Ilha da Luta” à brasileira.

– Foi um nível de loucura incomensurável. Eu nunca vi nada igual e olha que já cobri… Foi no meio da floresta amazônica, uma coisa de maluco. Teve grandes nomes, foi histórico. Metade dos atletas foi parar no UFC. Levou um card alucinante, em condições adversas, iniciando uma nova fase no MMA nacional e firmando o evento como o principal do país, assim como tivemos, anteriormente, o IVC (de 97 a 99) e o Meca (de 2000 a 2003).

Passarelas de palafitas interligavam as áreas do hotel e só era possível chegar de barco — Foto: Marcelo Alonso

Passarelas de palafitas interligavam as áreas do hotel e só era possível chegar de barco — Foto: Marcelo Alonso

Ex-lutador do UFC e com 17 anos de carreira no MMA, Gabriel Napão endossa as palavras de Alonso, citando passagens marcantes do evento.

– Foi muito doido. Era uma ilha na Amazônia, fomos recebidos por um ídolo da luta (Inoki), vi lutadores tomando tapa na cara por respeito. A gente foi recepcionado por mulheres vestidas como índias. Parece até enredo de filme muito doido. Não tem como ser mais exótico que isso, e olha que já lutei contra um ex-presidiário, irmão do maior lutador dos anos 2000, recebendo meu cachê em dinheiro de um produtor russo, com uma tradutora portuguesa. Foi exótico, mas esse Jungle Fight ninguém bateu ainda – recordou o faixa-preta, que perdeu para Fabrício Werdum por nocaute técnico, no terceiro round.

Histórias e curiosidades do evento

Ringue serrado

Montado em uma espécie de “auditório”, o ringue apresentava menos de dois metros de distância até o testo de palha, o que inviabilizaria a luta de Ricardão Moraes, que mede 2,03m. A solução, então, foi cortar a estrutura do palco dos combates.

– Essa foi a primeira guerra, porque o ringue não cabia. Tivemos que serrar o pé do ringue, por conta da altura, porque o Ricardão Moraes tinha mais de dois metros e não ia dar para filmar também. O equipamento do SporTV, na época ainda era Faixa Combate, porque não existia o Canal, demorou oito horas de balsa para chegar. O evento foi exibido ao vivo para o Brasil e pela Fuji TV, do Japão – relembrou Wallid, que até então jamais tinha organizado um evento de qualquer natureza.

Ringue precisou ser serrado para que o atleta Ricardão Moraes não batesse com a cabeça na estrutura do teto — Foto: Marcelo Alonso

Ringue precisou ser serrado para que o atleta Ricardão Moraes não batesse com a cabeça na estrutura do teto — Foto: Marcelo Alonso

Luta principal

Basta uma olhada rápida no card para notar nomes que viriam a ser consagrados no UFC. Entretanto, na época, quem liderou o card foi Jorge Patino “Macaco”, que faria sua 26ª luta na carreira. Ele nocauteou o estreante Ronaldo Jacaré – astro do jiu-jítsu que se aventurava em uma nova modalidade – aos 3m13s do round inicial. Atualmente, eles treinam juntos nos Estados Unidos.

Jorge Patino "Macaco" levou a melhor na luta principal ao nocautear Ronaldo Jacaré — Foto: Marcelo Alonso

Jorge Patino “Macaco” levou a melhor na luta principal ao nocautear Ronaldo Jacaré — Foto: Marcelo Alonso

– Foi uma luta dura. O Jacaré veio para cima, eu me movimentei para encontrar o tempo. Encaixei um suingue de direita atrás da orelha dele. Eu vi que ele sentiu, soltei mais um e venci a luta. Foi muito top, está na minha carreira e na minha história. Hoje em dia o Jacaré é um dos grandes nomes do UFC. É meu companheiro de treino, um cara muito humilde, sangue bom. E vou falar: hoje só apanho do Jacaré (risos), que é um monstro, forte e resistente. Ele passa o carro em todos os treinos comigo, de quimono, sem quimono ou no MMA. Naquela época eu estava novo, agora estou com 47 anos (risos).

Tapa na cara

Reza a lenda que certa vez, no Japão, um pai pediu a Antonio Inoki para dar um jeito em seu filho, que não queria estudar. O promotor de evento – respeitadíssimo no país – teria dado um tapa no rosto da criança que anos mais tarde teria se tornado uma pessoa bem sucedida, trabalhadora. Os tapas de Inoki, então, viraram tradição e, no Jungle Fight, não foi diferente.

Ebenezer Braga foi um dos "agraciados" com o tapa desferido por Antonio Inoki (blusa xadrez) — Foto: Marcelo Alonso

Ebenezer Braga foi um dos “agraciados” com o tapa desferido por Antonio Inoki (blusa xadrez) — Foto: Marcelo Alonso

Ebenezer Braga: “O tapa na cara do Antonio Inoki é um ritual deles, no Japão, de passar bons fluidos aos lutadores, sorte, força, ânimo e coragem. Entramos no tapa antes da luta. Ele sentou a mão”.

Se o tapa ajudou ou não, é impossível saber. O fato é que Ebenezer Braga abriu o evento com vitória por finalização sobre Rodrigo Gripp com apenas 33 segundos de luta.

Lyoto Machida x Stephan Bonnar

A luta entre Lyoto Machida e Stephan Bonnar colocou frente a frente dois atletas que chegariam longe no esporte. O anfitrião, que fazia seu segundo confronto no MMA, venceu o americano por nocaute técnico no primeiro round. Seis anos depois, o “Dragão” conquistaria o cinturão do peso-meio-pesado do UFC. “The American Psycho”, por sua vez, protagonizaria um dois duelos mais emblemáticos do esporte na derrota por pontos para Forrest Griffin, na primeira edição do TUF, alavancando a fama do MMA.

Lyoto Machida vence Stephan Bonnar em sua segunda luta no MMA — Foto: Marcelo Alonso

Lyoto Machida vence Stephan Bonnar em sua segunda luta no MMA — Foto: Marcelo Alonso

Mergulho entre jacarés, sucuris e piranhas

Marcelo Alonso: “O evento estava ao vivo no Japão, e o Inoki ia aparecer 2h da manhã no Rio Negro. Ele gostava de aparecer nos eventos de uma forma diferente, já chegou de paraquedas no Pride… No Jungle, ele pulou no rio, que tinha jacaré, piranha, cobra, tudo. Pulou de sunguinha, depois botou o terno e apareceu com uma macaquinha no colo em cima do ringue”.

Inoki chegou ao evento nadando à noite e ignorou os perigos do rio — Foto: Marcelo Alonso

Inoki chegou ao evento nadando à noite e ignorou os perigos do rio — Foto: Marcelo Alonso

Vômito, “meme” e cabelo raspado

Fabrício Werdum: “Todo mundo ficou muito impressionado com o lugar. Eu lembro de ter lutado com o cabelo raspado. Fui cortar o cabelo, mas a máquina estava cega. Doeu muito, me lembro muito bem. Tive que raspar a cabeça, por isso estava assim na luta. Fez uns caminhos de rato na cabeça (risos). Eu lembro que doeu muito. Estava muito feio, horrível. Eu coloquei um cocar em homenagem aos índios e até hoje meus amigos colocam nos grupos do Whatsapp para falar: ‘Werdum é índio”. Eles tiram onda comigo. Lutei ‘de guerreiro’, não estava preparado, saí da Espanha para lá. Quando acabou a luta, fui dar entrevista e vomitei ao vivo (risos), de tão cansado que estava. Foi uma guerra contra o Napão. Eu me lembro de ter vomitado antes da entrevista para o Joinha. Foi o evento mais exótico que já participei, mesmo tendo lutado em evento de fundo de quintal em Londres”.

Fabrício Werdum até hoje recebe a foto dos amigos em seus grupos no Whatsapp — Foto: Marcelo Alonso

Fabrício Werdum até hoje recebe a foto dos amigos em seus grupos no Whatsapp — Foto: Marcelo Alonso

Iates à deriva

Wallid Ismail: “Eu me lembro que muitos convidados foram de iate e amarraram na balsa onde ficava o gerador e a unidade móvel. Com a correnteza, os barcos estavam arrastando a balsa, tive que cortar a corda dos barcos para salvar a transmissão (risos)”.

Iates e lanchas ficavam atracados no hotel, que já foi um dos mais famosos do país — Foto: Marcelo Alonso

Iates e lanchas ficavam atracados no hotel, que já foi um dos mais famosos do país — Foto: Marcelo Alonso

Queda de Luz

Evangelista Cyborg: “Foi muito massa, estavam os grandes atletas da época. Não tinha luz elétrica, era tudo à base de gerador. A luz acabou no meio da minha luta (risos). O árbitro interrompeu rapidamente, deu um tempinho e voltou. Foi marcante, irado mesmo. Foi o melhor Jungle, tanto por nunca mais ter tido um card daquele, quanto pela excentricidade.

Cyborg venceu Lucas Lopes por nocaute técnico no segundo round, na co-luta principal — Foto: Marcelo Alonso

Cyborg venceu Lucas Lopes por nocaute técnico no segundo round, na co-luta principal — Foto: Marcelo Alonso

Naufrágio com estrelas do MMA?

Marcelo Alonso: “Estava o mundo todo da luta. Teve uma hora no barco que eu olhei e falei: ‘Se esse barco afundar, vai acabar o MMA no mundo’. Estavam ali: Minotauro, Minotouro, Ronaldo Jacaré, Paulão Filho, Werdum, Lyoto, Napão, Evangelista Cyborg. Eram mais de 50 pessoas”.

Figuras conhecidas do MMA estiveram nesta edição — Foto: Marcelo Alonso

Figuras conhecidas do MMA estiveram nesta edição — Foto: Marcelo Alonso

Convidados ilustres

Em 2003, Rodrigo Minotauro era um rosto mais conhecido no Japão do que no Brasil. O peso-pesado, que no ano anterior havia feito a antológica luta contra Bob Sapp, no Pride, foi um dos convidados do Jungle Fight, assim como seu irmão. Rogério Minotouro, inclusive, venceria Kazushi Sakuraba três meses depois, na luta principal do Pride Shockwave, em Tóquio.

Paulão Filho também figurou no card do Jungle Fight, porém, como árbitro. Em 2003, ele tinha apenas três anos de carreira como lutador de MMA e se apresentava nos ringues japoneses, do Pride e do Pancrase.

Rodrigo Minotauro e Ronaldo Jacaré, que estreou no MMA no Jungle Fight I — Foto: Marcelo Alonso

Rodrigo Minotauro e Ronaldo Jacaré, que estreou no MMA no Jungle Fight I — Foto: Marcelo Alonso

Japoneses na plateia

O Jungle Fight foi testemunhado apenas por pessoas convidadas pela organização. Contudo, chamava a atenção a presença de eufóricos japoneses, que saíram do país rumo a Manaus em um voo fretado.

Japoneses aplaudem a chegada de Inoki, que tem status de semideus no país oriental — Foto: Marcelo Alonso

Japoneses aplaudem a chegada de Inoki, que tem status de semideus no país oriental — Foto: Marcelo Alonso

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