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Consciências prendadas e sem defeito

Leyla Yurtsever, advogada, articulista e professora

 

 

Atualmente os anúncios de jornais já não tem a mesma visibilidade de outrora. Meios modernos oferecem uma dinâmica condizente a modernidade, onde objetos, imóveis e veículos são negociados livremente. Mas, em 1879 era comum encontrar nas páginas dos jornais um outro tipo de anuncio: a venda de escravos. Exemplo dessa prática pode ser visto no seguinte recorte: “ESCRAVA – Vende-se uma, mulata de 38 anos, com um filho de 3 anos de cor clara e compra-se uma negrinha de 10 a 12 anos. Para tratar á rua Quitanda n. 20”.  Outro anuncio similar informava que o “escravo á venda era prendado e sem defeitos”.

Distantes quase 150 anos destes anúncios, podemos hoje fazer uma reflexão sobre as marcas de um sistema que transformou pessoas em objetos e coisas negociadas livremente. A referência a cor clara do filho é significativa. Uma denúncia objetiva, nos dias atuais, de uma mulher escravizada e abusada por seus senhores.

Mas do que o reconhecimento da luta e dos direitos de uma etnia, o Dia Nacional da Consciência Negra é uma oportunidade de refletir sobre como estamos construindo nossa sociedade. Não foram apenas os meios de comunicação que se modernizaram, os preceitos também se atualizaram. Racismo, discriminação, igualdade social, inclusão humana, intolerância religiosa e defesa de direitos são temas que afetam a diversos grupos. O ódio velado contra negros, índios, mulheres, nordestinos, ciganos e estrangeiros exigem uma consciência muito mais ampla.

Definir um dia para refletir sobre determinada etnia não consiste em elevar uma em detrimento de outra, mas é um convite ao desenvolvimento de uma consciência humana, onde todos são iguais. Não é um debate sobre raça, pois só existe uma em todo planeta: a raça humana. Também não deve se constituir em revanchismo, pois os erros do passado são lições que podem nos ajudar a corrigir o presente. E não se constrói uma sociedade sem aceitar que esta se faz na pluralidade.

A representatividade negra é significativa, principalmente se considerarmos que o Brasil é um país de população mestiça. Ainda assim, ser negro no Brasil é sinônimo de resistência e luta. O abismo social que separa brancos e negros é persistente e crescente. Desemprego, taxa de homicídio, população carcerária, ganhos salariais menores e outros são apenas alguns dos indicadores de uma triste realidade onde a população negra figura como protagonista. Ser negro no Brasil é trazer no corpo uma realidade onde muitas histórias são escritas.

Mesmo o mais popular dos esportes no Brasil, o futebol, tem mostrado cenas de discriminação de forma reiterada. Mas esta também é uma luta antiga. Considerando um esporte da aristocracia no início, muitos clubes não admitiam jogadores negros. Para driblar esse preconceito muitos jogadores tiveram que usar pó de arroz em um processo de branqueamento forjado.

Para quaisquer áreas que se aponte não faltariam exemplos exponenciais da contribuição negra. Em um momento tão calamitoso como o que estamos vivendo, não basta apenas não ser racista, é preciso também ser antirracista.

Superar este estado inglório é possível. É apenas uma questão de atitude. Estamos precisando de uma sociedade com pessoas, a exemplo do terrível anuncio, que sejam “prendadas e sem defeitos”.

 

 

Leyla Yurtsever é advogada, articulista e professora. Sócia e fundadora do escritório jurídico Leyla Yurtsever Advogados Associados. Graduada em Direito. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Ciesa; e em Direito Penal e Processo Penal pela UFAM. É Mestre em Gestão e Auditoria Ambiental pela Universidad de Leon (2006) – Espanha. Doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Santa – Fé – UCSF. Foi coordenadora do Curso de Especialização em Direito Eleitoral da Universidade do Estado do Amazonas e do Núcleo de Prática Jurídica, neste último atua ainda como professora. Palestrante convida da Escola Judiciária Eleitoral – EJE/ AM. Coordenou e lecionou no Escritório Jurídico da UNIP e no Núcleo de Advocacia Voluntária – NAV – da Uniniltonlins. Professora da Universidade Federal do Amazonas e subcoordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UFAM/Direito. Foi professora do curso de Segurança Pública da UEA e a primeira mulher a ser professora de uma disciplina militar denominada “Fundamentos Políticos Profissionais” no Comando-geral da Polícia Militar. Atualmente é Assessora Jurídica Institucional da Polícia Militar do Amazonas.

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