Por que a mulher de “A Força do Querer” pode ser TUDO, menos mera coadjuvante?

Desde sua estreia em abril de 2017, a novela “A Força do Querer”, da TV Globo, mostrou a que veio: conseguiu levantar o ibope da faixa nobre da emissora, colocou em evidência questões sociais da atualidade, como o debate de gênero no Brasil, e ainda deu destaque para a figura da mulher em um momento em que as discussões sobre empoderamento estão em plena efervescência.

Com uma trama moderna que se desenrola em ritmo mais dinâmico, a história criada por Gloria Perez teve uma crescente aceitação junto ao público e registrou bons índices de audiência na grade das 21h – que, por mais que estejam longe dos recordes de novelas anteriores, exibidas no mesmo horário, ainda mostram o grande sucesso da obra se comparada com sua antecessora, “A Lei do Amor”.

Sucesso de “A Força do Querer”

Muito do êxito da novela está diretamente ligado à fórmula da autora para a construção de suas histórias, que mistura temas atuais, polêmicas relevantes e personagens marcantes. Além disso, embora repita alguns clichês da teledramaturgia, o enredo dramático também é capaz de prender a atenção do público e gerar identificação com os telespectadores.

Outra parte do trunfo de “A Força do Querer” está no fato de Gloria retratar universos tão diferentes com um denominador comum: o poder feminino.

Isso porque a autora ambienta a trama em três núcleos principais bem distintos – a classe média-alta carioca, o mundo do tráfico de drogas na favela e a cultura do Norte do Brasil – e coloca em cada um deles uma protagonista mulher.

Personagens femininas no centro da trama

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 A novela se desenrola basicamente em torno de Ritinha (Isis Valverde), Jeiza (Paolla Oliveira) e Bibi (Juliana Paes), que estão inseridas em contextos opostos, possuem características próprias e enfrentam conflitos individuais. No entanto, as vidas delas acabam se cruzando e elas interagem em cena, construindo juntas o fio condutor da história. São elas que movimentam toda a trama.
Ritinha é a jovem da cidade fictícia de Parazinho, no Pará, que acredita ser uma sereia e conquista a todos com sua personalidade ingênua e desprendida. Dona de um jeito inconsequente, ela gosta de se sentir adorada por todos e acaba se envolvendo com dois homens ao longo da trama: o caminhoneiro Zeca (Marco Pigossi) e o empresário Ruy (Fiuk), que são inevitavelmente manipulados pela moça – que foge de seu primeiro casamento e esconde a paternidade de seu filho.

Ao se mudar para o Rio de Janeiro, Ritinha vem a conhecer a policial Jeiza, que começa a namorar o ex-marido da sereia, Zeca – que, por sinal, parece não ter superado sua antiga paixão. Corajosa e decidida, a loira sonha em se tornar uma lutadora profissional de MMA e passa longe da imagem de “mocinha indefesa”, impondo respeito por onde passa. Ela, aliás, é uma das primeiras personagens femininas das novelas que são policiais por profissão.

É por conta de seu trabalho que Jeiza acaba encontrando Bibi, uma mulher que trocou um ex-namorado bem-sucedido, Caio (Rodrigo Lombardi), para formar uma família com Rubinho (Emílio Dantas), um estudante de química que trabalha como garçom. Os dois se casam, têm um filho, Dedê (Gabriel Almeida Bravo), e encaram dificuldades financeiras, que fazem com que Bibi largue a faculdade de Direito para ganhar a vida como cabeleireira.

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Inspirada em uma história real, a vida de Bibi só passa por essa mudança por conta do amor quase doentio que ela sente pelo parceiro – ela faz o tipo que ama demais e só entende o amor em nível máximo. É por esse motivo que ela acaba ficando cega para a má índole do marido e acaba mergulhando no mundo do crime por ele.

A partir das três, o telespectador é apresentado a outras mulheres fortes que se destacam tanto quanto as protagonistas, como é o caso da socialite Joyce (Maria Fernanda Cândido), da rica dona de casa Silvana (Lilia Cabral) e da arquiteta Irene (Débora Falabella). De acordo com Claudino Mayer, doutor em ciência da comunicação pela ECA-USP, esse efeito é o resultado de uma escolha bem-sucedida do elenco.

“As personagens parecem que foram feitas sob medida para cada artista. No caso das mulheres, elas estão dando o tom adequado às suas histórias, por isso é difícil identificar o que é trama principal e o que é trama secundária. Tudo por causa da atuação de cada uma”, explica.

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Protagonistas fortes e transgressoras

O recurso de colocar mulheres no centro da história não é novidade no estilo de Gloria Perez. “Todas as minhas novelas e minisséries foram protagonizadas por mulheres fortes e transgressoras. Desse ponto de vista, nada mudou”, reforça a autora em entrevista ao VIX.

Porém, em “A Força do Querer”, a dose tripla (e quase múltipla) veio para dar voz a todos os perfis de mulheres da sociedade – ainda que estejam cercados de elementos da ficção que eventualmente reforçam estereótipos negativos da figura da mulher. É justamente desta forma que a autora consegue questionar (ou escancarar) certos paradigmas e tabus que permeiam o dia a dia.

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“Este é o estilo Gloria Perez de representar alguma lacuna que existe na sociedade e que está passando despercebida pelo público em geral. Ela faz isso tão bem que consegue envolver os espectadores. As personagens são vozes representativas de diferentes perfis de mulheres, seja de periferia, de classe média ou elite”, diz Claudino.

Segundo o especialista, essa representação das mulheres tem muito a ver com a própria vivência da autora e é um reflexo da mulher brasileira, que vai à luta no dia a dia, é independente e “não precisa de homem para se sustentar”. Mulheres que tomam as rédeas e decidem o rumo de suas vidas.

“São situações que nós deixamos de ver, que passam despercebidas. Essas mulheres já estão na sociedade, mas por questões machistas, não conseguem destaque. E a Gloria faz isso muito bem, dá voz para esses perfis de mulheres que estão aí”, acrescenta.

Homens são antagonistas

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 Ainda que retrate homens conservadores e, muitas vezes, escancaradamente machistas na trama, Gloria conseguiu criar personagens femininas tão fortes e determinadas que elas acabam ofuscando qualquer brilho masculino. A decisão de dar pouca voz à presença dos homens na novela, na verdade, serve para ressaltar as vozes femininas, segundo Claudino Mayer.

“A figura do homem nas tramas de Gloria Perez, quando aparece, é como se funcionasse como aquele que vai contra, que vem retrair tudo o que as mulheres fazem. Eles são os alicerces para que Gloria possa trazer esses lados das mulheres que nós não enxergamos na sociedade. Eles aparecem para questionar o que todas as mulheres estão fazendo. Eles funcionam como antagonistas”, esclarece o especialista.

Machismo em “A Força do Querer”

Mas, se por um lado Gloria deu destaque para as figuras femininas, por outro, a autora chegou a ser acusada de machismo por conta da maneira que certas cenas de suas heroínas foram exibidas ao público. As críticas enfatizam situações da dominação masculina na sociedade, diminuindo ou vulgarizando a presença da mulher a estereótipos grosseiros.

Como no caso das esposas e namoradas que fazem tudo por seus amados sem medir esforços (ou loucuras), a exemplo da personagem Cibele (Bruna Linzmeyer), que entrou em uma verdadeira obsessão para retomar – e ao mesmo tempo arruinar – o ex-noivo Ruy, quando este a deixou para ficar com Ritinha.

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“Minhas impressões, enquanto mulher e telespectadora que sou, são de que as construções das mulheres em ‘A Força do Querer’ não caminham no sentido de alertar e/ou contribuir para uma reflexão sobre emancipação feminina”, aponta Camilla Rodrigues Netto da Costa Rocha, mestre e doutoranda em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “Representar a mulher de forma estereotipada seria contribuir para a preservação de um discurso que corrobora com a manutenção da dominação masculina”.

Segundo a especialista, essas construções aparecem, por exemplo, na história de Silvana, que é uma mulher tipicamente burguesa e que, ainda que por força do seu vício em jogos “enrole” o marido, é ainda subordinada a ele. O mesmo acontece no enredo em torno de Joyce, que representa a “esposa rica que exerce a função de manutenção e zelo do lar e dos filhos”.

“No caso de Joyce, a trama retrata com bastante ênfase o quanto sua jornada é em prol da família (marido e filhos) e ela se torna muito solitária quando percebe que os familiares são sujeitos autônomos e independentes, responsáveis por suas próprias escolhas – e não as da Joyce”, explica.

Nem mesmo as protagonistas da novela estariam livres do machismo da teledramaturgia. De acordo com Camilla, até mesmo a perigosa Bibi que, por mais que transpareça força e poder no morro, por mais que tenha batalhado na faculdade e como cabelereira, também encaminha a vida dela para o crime em nome do marido. Tudo em função do amor que sente pelo marido, Rubinho (Emílio Dantas).

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Briga entre mulheres: história ou audiência?

Outro episódio que marcou o debate em torno do machismo em “A Força do Querer” diz respeito a um conflito entre três personagens centrais: Joyce, Ritinha e Irene. Na trama, Joyce descobre que o marido, Eugênio (Dan Stulbach), está vivendo um caso amoroso com Irene, que até então era sua amiga – e que se revela uma verdadeira cafajeste ao longo da história.

A situação foge do controle quando Joyce encontra a amante no banheiro de um restaurante e ouve as provocações da megera. Para fazer o circo pegar fogo, quem também aparece no local é Ritinha, a nora que Joyce demorou a aceitar e que sai em defesa da sogra traída. O que se segue ao encontro das três é um acerto de contas com muita pancadaria – em que Irene sai toda marcada pelos socos, tapas e “sapatadas” na cara.

Muito aguardada pelo público, a cena foi vibrada por aqueles (e aquelas) que torciam contra a vilã – fosse pelo mau-caratismo ou pela traição em si. Porém, enquanto alguns aprovaram, outros criticaram o recurso da violência feminina, ressaltando que a cena incentiva a competição negativa entre mulheres.

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“É cair em um lugar-comum, utilizar-se de uma construção já tão perpetrada sobre o destempero da mulher e que não tem nada a acrescentar. Só alimenta com mais combustível o motor do machismo. É completamente desnecessário colocar o acerto de contas entre a amante e a esposa traída por esse ângulo”, diz Camilla.

De acordo com ela, outro problema na briga entre as mulheres é que o marido saiu “ileso” da situação. “Essa questão foi mal trabalhada na novela quando praticamente isolou o Eugênio de qualquer responsabilidade”, afirma.

Gloria Perez está acostumada a incluir o elemento do conflito físico entre mulheres – presente em suas últimas quatro novelas na Globo: “Salve Jorge” (2012), “Caminho das Índias” (2009), “América” (2005) e “O Clone” (2001).

Sobre isso, Claudino defende que a autora escreve uma história para cada personagem, que acabam se cruzando no texto e geram o conflito. “A narrativa vai pedindo elementos que acabam levando às brigas. Se não for assim, a história gera antipatia e não dá certo”, diz.

Segundo ele, as novelas sobrevivem de conflito. “O politicamente correto na novela não existe. Se fosse na base do diálogo, seria uma coisa muito chata e ela perderia sua essência de entreter. O conflito tem que atrair as pessoas, o que gera a audiência. Se ela dá audiência, ela é um produto que tem que vender. É por isso que a novela se sustenta. A novela tem que entreter, mas, acima de tudo, ela é um produto de uma empresa que tem que vender – em todos os sentidos”, aponta.

O momento é delas

Por mais que seja uma obra de ficção em sua essência, “A Força do Querer” tem seu mérito ao dialogar com elementos da vida real e que eventualmente geram uma reflexão (direta ou indireta) em quem assiste – assim como sempre fez Gloria Perez em suas tramas televisivas. A novela está aí para provocar, incomodar, emocionar, divertir e fazer cada espectador repensar diversas situações no trabalho, na escola, na família ou onde for.

“Ainda que muitas vezes em linguagem simplificada, buscando o máximo de compreensão; ainda que utilizando estereótipos que comprometem e maculam o entendimento; ainda assim, a telenovela pode – e deve – ser considerada como um produto cultural que expõe diferenças e suscita o debate e a reflexão em torno de temáticas que assim exigem”, afirma Camilla Rocha.

Além de ressaltar a figura feminina na grade principal da TV Globo, a nova história de Gloria Perez não poderia ter ido ao ar em momento melhor. É que, pela primeira vez, todas as novelas da emissora, que estavam sendo exibidas entre as faixas das 18h e 23h, foram escritas por mulheres. Isso significa ter quatro grandes produções culturais, no principal canal de televisão do país, sendo pensadas, desenvolvidas e idealizadas por mentes femininas.

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